Em novo artigo, juiz Antonio Cavalcante diz: "Que os lábios beijem e as bocas falem das verdades do coração"
Que os lábios beijem e as bocas falem das verdades do coração
"Ela
Que ele me beije com os beijos de sua boca!"
Juiz Antonio Cavalcante (Foto: Reprodução/Blog do autor) |
No poema, a beleza de cantar o amor envolve o corpo, a alma, o espírito. Da mesma boca do amante saem versos que perguntam “quem é esta que avança como a aurora que desponta, bela como a lua, incomparável como o sol, terrível como um exército em linha de batalha?”, e os que sussurram “teus dois seios são como dois filhotes gêmeos de uma gazela” e “os contornos dos teus quadris são como colares, fabricados por mãos de artista.”
Numa aula magna no curso de Direito – na verdade, aula de despedida por estar me aposentando como professor –, e como parte de um projeto sobre música e direito, escolhi a canção Dois Rios, como mote de minha fala. E depois de explicar sobre como a música foi composta, comparei o verso inicial do Cantares a um trechinho da letra da canção.
Dois rios é obra de três compositores. Samuel Rosa e Lô Borges fizeram a melodia. E para escrever a letra, a primeira coisa que veio à cabeça de Nando Reis foi a imagem de dois lábios como dois rios. Essa imagem é repetida com pequena variação quando se canta: “que os braços sentem, e os olhos veem, e os lábios beijam, dois rios inteiros sem direção.”
Tal e qual os dos amantes do Cântico dos Cânticos, os lábios dos versos de Nando Reis desejam o beijo da boca de quem se ama. Mas além de lábios, na canção eles são dois rios, fluxos líquidos e visíveis do amor que faz duas pessoas se tornarem uma só carne, cumprindo o mandamento divino. Os rios são sem direção, não porque o fluxo do amor não tenha rumo ou sentido. Mas porque, por maior que seja o cuidado e a entrega dos amantes, ninguém controla a correnteza da vida.
A falta de controle das variáveis da experiência humana não é privilégio das coisas do coração. Que o diga a missão de colocar no espaço o telescópio James Webb. Aventura das ciências e tecnologias na busca de captar luzes cósmicas do passado longínquo, procurando respostas mais precisas sobre como o ferro do nosso sangue e o cálcio dos nossos ossos foi formado a partir da poeira estelar. Na operação foram contabilizados quase trezentos e cinquenta pontos únicos de falha. Bastava um dar errado para tudo cair por céu abaixo, o que fez um dos diretores do projeto dizer que um cientista que afirma não depender também da sorte é idiota ou mentiroso.
Termino meus mais de quarenta anos como professor – quase trinta deles no curso de Direito – ainda apaixonado pela arte de aprender e ensinar. Tive a sorte de ter alunos e alunas que me queriam bem. Uma delas me quis tanto bem, que se tornou o grande amor de minha vida. Com eles e elas aprendi – e acho que ensinei – que racionalidade não é o único padrão na busca das verdades possíveis de se alcançar. E que me desculpem a Dra. Pasternak e o Dr. Orsi, por eu discordar da ideia por eles defendida, de que alguns conhecimentos que rendem boas metáforas e que, segundo suas palavras, operam sob “leis do tapete voador”, são pseudociências que não merecem ser levados a sério.
Não nego a relevância dos métodos científicos. Mas não creio que a ciência, tampouco doutrinas filosóficas, ideológicas ou religiosas, no plano da teoria, possam salvar o essencial nas relações entre as pessoas. Não apenas na vida a dois, mas na amizade e na doação de si, presentes na educação formal, da qual me despeço como professor, o mais importante é deixar que os braços abracem, os olhos vejam, os lábios beijem e as bocas falem das verdades do coração.
Por Antonio Cavalcante (juiz do Trabalho e professor universitário)
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