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Em novo artigo, juiz Antonio Cavalcante relata rotina no TRT; leia

Língua, coração e mente

Juiz Antonio Cavalcante (Foto: Arquivo Pessoal)
“Trabalhar no tribunal é muito bom. Não fossem os processos…” Este dito (com as variações decorrentes da transmissão boca a boca) é atribuído a um antigo presidente do nosso TRT.

Nos últimos meses, a sede do tribunal tem sido meu local de trabalho. Aumentaram, e muito, os casos para julgar. Mas cada dia gosto mais do que faço. É ótimo quando se pode reunir vocação e ganha-pão. 

Em meio às reflexões sobre as histórias de vida dos processos, dedicamos um tempinho para  histórias do mundo e de nós mesmos. Nem sempre há concordância nas conversas. Mas a mente e o coração abertos ajudam a construir uma espiral dialética de comunicação, colaboração e pertença, o que vejo como sinal de sabedoria. 

Sabedoria é um desejo ancestral. Antes da literatura sapiencial bíblica, os egípcios já procuravam resumi-la em Instruções. A mais conhecida, de Amenemope, pode ter servido de inspiração para trechos do livro dos Provérbios.

A aparência de verbalizações simples por vezes não nos faz perceber a complexidade cultural contida nos provérbios. Quase sempre eles nascem a partir de vivências e saberes populares, repassados oralmente e guardados na memória do povo. Depois de algum tempo, alguém os traz para o mundo da escrita, mantendo, o quanto possível, o ritmo e a vivacidade próprios da literatura oral. Portanto, nada mais justo dizer, como John Russel, que provérbio é “sabedoria de muitos e engenho de um só.”

A Instrução de Amenemope é um bom exemplo desse engenho de um só. Nos trinta ditos, o escriba egípcio deixa um rico legado de sabedoria para quem se dispõe a ouvir as coisas que são ditas, que dedica sua mente à interpretação dessas coisas e as deposita em seu coração.

Entre os vários conselhos, a Instrução ensina que “melhor é o pão quando a mente está serena, do que riquezas, mas com ansiedade” e que ninguém deve ir para a cama temendo o amanhã, “pois quando o dia raiar, o que será o amanhã?” Adverte ainda para jamais o ser humano arrogar para si o poder da divindade, pois “o homem é barro e palha, e Deus é o seu oleiro.” 

Mas para que a Instrução instrua, é preciso que a pessoa não separe a língua da mente, ainda mais sabendo que a divindade odeia quem falsifica palavras. 

Língua enganadora também é uma das seis coisas que o Senhor do livro dos Provérbios detesta. Tanto quanto olhos empinados, mãos que derramam sangue inocente, coração que trama planos perversos, pés ligeiros para fazer o mal e testemunha falsa contando mentiras. E a sétima que a alma de Deus abomina é quem semeia discórdia entre irmãos.

Todo santo dia ouço gente contando mentira para semear discórdia. Analistas de semblante empinado e de língua solta para comentários rasos e precipitados, que nem merecem ser chamados de análises. Bem que podiam dar ouvidos ao conselho de Amenemope, de que uma coisa valiosa no coração de Deus “é o parar e o pensar antes de falar.”

Esse conselho vale para todo mundo. A começar por mim. Afinal, se como diz o livro dos Provérbios, morte e vida estão no poder da língua, e o que a gente escolher, isso a gente colherá, melhor não desconectar a língua da mente. E que ela fale das coisas boas que se escolhe guardar no coração. Uma escolha assim ajuda a gente fugir da espiral diabólica de incomunicação, desajuda e afastamento. 

Que a gente abra a boca com sensatez e a língua ensine com bondade; que a exemplo da língua dos sábios, a nossa se torne medicina que cura e espalha conhecimento; que seja pacificadora árvore de vida e prata escolhida, como a língua do justo.

Por Antonio Cavalcante (juiz do trabalho, escritor)
Em 03 de julho de 2024
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