OPINIÃO! "Ainda que a terra mude", escreve juiz Antonio Cavalcante
Ainda que a terra mude
Escritor Antonio Cavalcante (Foto: Arquivo Pessoal) |
Stand by me é uma canção que cai bem em qualquer casamento. Fala que quando a noite chega e a lua é a única luz que se vê, não se deve ter medo, contanto que a pessoa amada fique ao nosso lado. Porém é mais que uma canção de amor. Alguns dos seus versos são inspirados no Salmo 46, com nítida influência da música gospel do Reverendo Tindley.
Charles Albert Tindley nasceu em 1851, em Maryland, Estados Unidos. Embora tivesse o status de pessoa livre – pelas regras de escravidão anteriores à Guerra de Secessão, ele era livre por ser filho de mulher livre –, o pai dele foi escravo, e o próprio Tindley cresceu entre escravizados. Sua origem rural permitiu-lhe contato com o spiritual, gênero musical ao mesmo tempo religioso e abolicionista, e também com as músicas de camp meeting, evento religioso em que as pessoas se reuniam para orar, cantar hinos, ouvir pregadores e se divertir.
Depois da Guerra Civil, mudou-se para Filadélfia. Lá trabalhou carregando tijolos. Ele e a esposa iam para os cultos numa Igreja Metodista, onde se voluntariou como zelador. Não frequentou escola, mas aprendeu a ler soletrando escritos em pedaços de papel que encontrava. Estudou hebraico em uma sinagoga local, e grego num curso por correspondência. Depois se tornou Pastor e compôs várias músicas baseadas nos Salmos.
O Reverendo Tindley é considerado um dos pioneiros da cultura gospel. Antes dele e de William Henry Sherwood – tido como primeiro grande compositor desse gênero –, os negros de igrejas protestantes, de modo geral, cantavam spirituals e canções de camp meeting adaptadas, com hinário semelhante ao de congregações dos brancos. As canções do Reverendo eram diferentes. Além da inovação rítmica que permitia maior improvisação, falavam não só na salvação de almas, mas das tempestades da vida, como na sua canção Stand by me, gravada por Elvis Presley.
O Salmo 46, que inspirou o Reverendo Tindley nessa canção, é conhecido como cântico de santa confiança. Ele faz parte das liturgias das igrejas judaica, católica, anglicana e protestante. Também é chamado Salmo de Lutero, que compôs o hino “Castelo Forte” com base nele. E essa força inspiradora chegou até a música escolhida para o casamento real, que não é a canção de Tindley, mas a composta por Ben E. King, em parceria com Jerry Leiber e Mike Stoller
Lançada em 1961, na interpretação do próprio Ben E. King, a canção ganhou o mundo. Na época, como observa o historiador Craig Werner, um cantor negro, como King, cantar uma música em que repete “não, eu não terei medo” é um exemplo clássico de “mascaramento político”. Não é por acaso que mais do que uma canção de amor, Stand by me tornou-se hino aos direitos civis, tal qual We shall overcome, que também bebeu na fonte gospel do Reverendo Tindley.
Diz o Salmo que Deus é nosso refúgio e fortaleza. Pelo que não temeremos, ainda que a terra se mude, e ainda que os montes se projetem para o meio dos mares; ainda que as águas rujam e espumem, e com sua fúria abalem os montes. A canção de Ben King fala que se o céu se despedaçar e cair, ou as montanhas desmoronarem até o mar, não se deve chorar ou ter medo.
Numa cerimônia de casamento, como a de Meghan e Harry, os noivos se prometem um ao outro por toda a vida. Mas a vida é feita de altos e baixos, num mundo cheio de ameaças de destruição e morte. O que nos sustenta, então, nos momentos difíceis?
Só Deus é socorro bem presente na angústia. Ele é supremacia que não se pode confinar em palácios. É amor infinito, que não se reduz a mesquinharia de rótulos lambuzados no fel do ódio mútuo para cancelar quem não compartilha ideologias e crenças. Sem Ele todos nossos esforços são em vão. Com Ele não temeremos, ainda que a terra se mude.
Por Antonio Cavalcante (juiz do Trabalho e escritor)
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